Por Eugenio Lara
A questão do
racismo no pensamento de Allan Kardec é bastante controversa. Há quem o
considere racista por suas declarações acerca da raça negra. Outros preferem
ignorar, dão de ombros e fingem que nada foi dito: tergiversam. “Nem tanto ao
mar, nem tanto à terra”, diz o dito popular. A consideração do contexto
histórico em que Kardec fez tais declarações é fundamental para entendermos seu
pensamento, sem cairmos em posições extremadas.
No século 19, a rigor, toda a Europa era “racista”, por se autoconsiderar como modelo, como padrão estético e cultural. Este fato, somado ao quase completo desconhecimento da realidade cultural e social do continente africano, fazia de qualquer europeu de classe média um sujeito preconceituoso em relação a outras culturas e etnias, especialmente a africana. Ainda mais os franceses, que são xenófobos históricos e bastante chauvinistas. Kardec não seria exceção, tanto quanto os médiuns que colaboraram com ele na estruturação do Espiritismo.
Um dos
primeiros fatos a serem considerados é a filiação de Allan Kardec à Frenologia
(ou Craniologia), que na época obteve certa proeminência. Considerada hoje como
pseudociência, foi fundada pelo médico alemão Franz Joseph Gall (1758-1828).
Segundo essa pretensa teoria científica, as formas do crânio, sua morfologia,
teriam relação com o caráter, com a moralidade e até com a espiritualidade. O
grande criminalista e espírita italiano César Lombroso também era partidário
dessa teoria. Kardec foi membro e secretário por vários anos da Sociedade
Frenológica de Paris.
A adesão a
essa pseudociência levou Kardec a pensar sobre o aspecto físico do negro, na
suposta expressão de sua inferioridade intelecto-moral pela morfologia, o seu
biótipo, em comparação com a raça caucasiana, como vemos nessa afirmação
categórica: “O negro pode ser belo para o negro, como um gato é belo para um
gato; mas, não é belo em sentido absoluto, porque seus traços grosseiros, seus
lábios espessos acusam a materialidade dos instintos; podem exprimir as paixões
violentas, mas não podem prestar-se a evidenciar os delicados matizes do
sentimento, nem as modulações de um espírito fino.”
Hoje
polêmica, esta afirmação de Kardec em Obras Póstumas (Teoria da Beleza) reforça
sua ideia de que a raça branca seria a mais bela e evoluída: “podemos, sem
fatuidade, creio, dizer-nos mais belos do que os negros e os hotentotes. Mas,
também pode ser que, para as gerações futuras, melhoradas, sejamos o que são os
hotentotes com relação a nós. E quem sabe se, quando encontrarem os nossos
fósseis, elas não os tomarão pelos de alguma espécie de animais”.
É fundamental considerar também o fato de que o século 19 foi marcado por uma visão desenvolvimentista, “evolucionista”, de que haveria um padrão de progresso civilizatório a ser alcançado pelos seres humanos, pelas sociedades. De tal modo que, sob essa visão eurocentrista, marcada pelo positivismo, muitos povos e grupos sociais eram vistos como “primitivos”, “atrasados”, por não possuírem o mesmo progresso tecnológico e cultural das sociedades ditas “civilizadas”. É essa a concepção de mundo que possuía Allan Kardec, presente tanto em seu modo de pensar como no corpo doutrinário do Espiritismo.
No entanto,
há um diferencial que precisa ser considerado. O critério de Kardec não é
somente o tecnológico, cultural. O critério dele é profundamente ético. Segundo
o Espiritismo, uma nação somente poderá se considerar civilizada se praticar a
lei de amor e caridade, se houver alteridade, o respeito ao próximo, liberdade,
fraternidade e igualdade entre todos os seus membros.
A libertação
feminina é a “pedra de toque” dessa questão. Uma sociedade que trata as
mulheres com violência, prepotência, desprezo e discriminação não tem o direito
de se considerar civilizada. O Espiritismo sempre foi contra qualquer tipo de
escravidão. Foi pioneiro em relação à defesa dos direitos das mulheres, num
século em que a mulher ainda era muito mais discriminada e desrespeitada do que
hoje. Denizard Rivail/Amélie Boudet foram exemplo de casal fora das regras de
sua época. Gabi era quase dez anos mais velha do que Rivail, um fato insólito e
pouco desejável. Os dois não tiveram filhos, outra estranheza. Mesmo oriunda de
família rica, Gabi sempre trabalhou e, ao invés de se dedicar às futilidades
próprias das senhoritas e matronas da elite francesa, preferiu manter-se ao
lado do marido, como parceira, colaboradora, dando-lhe apoio logístico, afetivo
e doutrinário em sua empreitada. E prosseguiu, após a desencarnação de Rivail,
o trabalho por ele iniciado.
Além da
questão da mulher, acrescentaríamos ainda o tratamento dado aos idosos, às
crianças, aos animais, à natureza, como fatores fundamentais para a
identificação do provável progresso civilizatório de uma nação.
Isto posto, a
afirmação de que Allan Kardec teria sido racista é equivocada. Sem saber, ele
era preconceituoso em relação ao negro, aos índios, aborígenes etc. assim como
todo e qualquer europeu de seu tempo também o era. Expressou a visão de sua
época, marcada pelo preconceito em relação à diversidade cultural, étnica. Isto
não significa que ele discriminasse o negro, que o visse como um objeto, um
animal de carga. A escravidão, seja ela qual for, é condenada pelo Espiritismo.
Já o era pelos iluministas. Essa herança, Kardec também assimilou. Segundo o
Espiritismo, nenhum ser humano deve ser tratado como objeto.
Além disso, a
ideia de que Kardec seria racista é, também, incompatível com a proposta
espírita em relação ao progresso da civilização:
799. De que maneira o Espiritismo pode contribuir para o progresso?
– Destruindo o materialismo, que é uma das chagas da sociedade, ele faz os homens compreenderem onde está o seu verdadeiro interesse. A vida futura, não estando mais velada pela dúvida, o homem compreenderá melhor que pode assegurar o seu futuro através do presente. Destruindo os preconceitos de seita, de casta e de cor ele ensina aos homens a grande solidariedade que os deve unir como irmãos. (O Livro dos Espíritos - trad. Herculano Pires, grifo meu).
As afirmações
de Allan Kardec sobre o negro, a correlação da teoria espírita da evolução com
a Frenologia, demonstram o seu evidente preconceito, mas não o guindam à
condição de racista, tipo um Hitler, um neonazista ou algum membro radical da
Ku Klux Klan. Preconceituoso sim, racista não!
http://umolharespirita1.blogspot.com.br/2013/02/allan-kardec-racista.html
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