Por Sérgio
Aleixo
Nada material pode ser obstáculo aos
espíritos. A matéria não pode interditá-los de nenhum modo. Assim,
teoricamente, em estrelas, planetas, no espaço sideral, possível é que os
invisíveis lá estejam em perfeitas condições. Sabe-se que nem sempre podem os espíritos,
entretanto, ir a todos os mundos, ou mesmo estar em qualquer lugar num mesmo
mundo, que tudo isso é conforme. Por quê?
O conceito de mundos transitórios
(Kardec assim o batizou) diz que, apesar da ausência de vida na superfície
estéril de certos planetas, esses orbes destinados seriam aos espíritos
errantes, que os habitariam para repouso, instrução e progresso. Tendo sido
esse o caso da Terra durante sua formação, o conceito se vincularia
obrigatoriamente à expectativa de que a vida se instale na superfície de tais
planetas, ainda inapropriados a ela; apenas em transição para tanto. Desse modo, nada tem ele a ver com as estruturas
conhecidas por colônias espirituais; edificações no além, algumas de
séculos, protegidas por muralhas, armas e até animais, onde os habitantes
teriam uma fruição de gozos e costumes tipicamente físicos, como nutrição,
eventos pagos, empregos remunerados, casamentos, etc.; moradias de todos os
tipos, com banheiro e cozinha, inclusive; assim como parques, plantações e
fábricas, seja de suco, de roupas, de artefatos, etc., etc. À luz da codificação
espírita, não passam de abusos ficcionais ditados nos interlúdios invigilantes
de médiuns sem discernimento, que acreditam lhes baste a boa intenção e a cega
confiança em seus guias para o exercício de suas faculdades.
O princípio espírita das criações
fluídicas, bom também é que se o diga logo, em nada ampara tais edificações no
além; nunca se viu que essas criações exorbitassem o entorno mais imediato do
próprio espírito, sua aparência, vestuário, certos objetos, pseudocompanhias,
etc.; tudo, porém, subordinado exclusivamente ao pensamento: 1) quando cria
ilusões ao espírito, ainda que eventualmente objetivadas nos fluidos; 2) quando
cria aparências que visem um fim qualquer, a encarnados ou desencarnados. Um princípio do Espiritismo, além disso, não pode ser
aplicado em contradição com os demais. Por que moradias e costumes de fruição
carnal existiriam no mundo espírita, se o perispírito não tem funções que
demandem nutrição, reprodução, etc., nem o além-túmulo, menos ainda, rigores
climáticos que o instabilizem? Grupos, famílias de espíritos, sociedades
inteiras deles, em regiões compatíveis com sua constituição fluídica, e unidos
por propósitos comuns, com ações planejadas e tarefas várias: isso é
Espiritismo! Todavia, nada existe aí que se aproxime das travessuras coloniais.
Demonstrado, pois, que os mundos
transitórios nada têm a ver com as colônias espirituais; sim, a
princípio, com planetas de superfície temporariamente estéril, avanço: e quanto
aos mundos que surgem e desaparecem na imensidão sem que a vida se manifeste
ali? Certo que não podem chamar-se transitórios, mas nem por isso estariam,
necessariamente, sem presenças invisíveis. O conceito de mundos transitórios
prevê que os espíritos que neles habitam podem deixá-los livremente, não
estando, assim, obrigados a aguardar o surgimento da vida na superfície. Desse
modo, por que os espíritos não se reuniriam, para repouso, instrução e
progresso, igualmente nos mundos não transitórios?
Razoável admitir, pois, que existam:
1) mundos que são habitados apenas espiritualmente de início e, depois, também
corporalmente; 2) mundos eventualmente habitados tão só por seres errantes,
embora não em especial destinados a estes, por não serem transitórios. Mas não
estaria faltando nada a esse panorama, por mais vasto? Eis aí nossa questão.
Sim! Sim! Tais considerações somente ambientam os espíritos, a bem dizer, no
universo físico, a modo de contingentes invisíveis e, nele, teoricamente,
inobstáveis. Dizem alguns, por isso, até que há certo segredo acerca do mundo
espírita em Kardec. Um tanto deslumbrados com a literatura ficcional mediúnica
e suas colônias, findam por conferir uma proporção absurda àquele silêncio
que o espírito Galileu diz estar sendo guardado, até ali, sobre o mundo
espiritual. E disso concluem haver mistério em Kardec a respeito da vida
espírita. Ora! “Até ali” só quer dizer até aquele ponto do próprio comunicado
de Galileu, que apenas falara do modo da criação do universo e silenciara
acerca do modo de criação dos espíritos que, nesse sentido, constituem o mundo
espiritual, de que Galileu passa então a falar.
Antes de tudo, são os espíritos que
integram o mundo espírita. E já não é coisa pouca. O que mais se quer conhecer?
A vida dos seres errantes por lá! Claro! Bem... Sabe-se que estão isentos de
nossas necessidades; mas que possuem ainda um corpo, embora etéreo, sem órgãos,
por mais denso. Onde se encontram com esse envoltório
fluídico? Somente nos meios físicos do universo, exceção feita à invisibilidade
própria dos espíritos? Se a matéria não lhes representa mais obstáculo, porque
não podem ir a todos os planetas nessa condição errante? Por que percorrer o
mundo espírita não pode ser, afinal, só uma viagem interplanetária,
intergaláctica, sem aparatos tecnológicos? Tudo reside na compreensão da
palavra espaço, ou melhor: espaços, nas letras kardecianas. Foi
dito ao mestre que o espaço é infinito e que aquilo que se julga vazio está
ocupado por matéria imponderável, em estado de fluido. Nessa medida, sim, os espíritos
estão por toda parte e são povoados todos os globos. Não disseram, aliás, que
povoam propriamente o espaço infinito, mas que “povoam ao infinito os espaços
infinitos”. Quando se lê, pois, que os espíritos estão no espaço, que transpõem
os mundos, a tais domínios tipicamente físicos do universo estão integrados os
domínios fluídicos, espirituais. Nestes é que existe o que pode ser obstáculo
aos espíritos, de acordo com sua situação perispirítica.
Este é o adendo que faltava à ideia inicial de mundos transitórios ou
intermediários, razão pela qual se limitou aparentemente a um panorama
interplanetário, astronômico.
Para Kardec, nosso belo planeta é
como um vaso do qual escapa densa fumaça, que vai aclarando à medida que se
eleva e cujas partes rarefeitas se perdem no espaço infinito. Esse é o âmbito
em que se define seu conceito de atmosfera espiritual terrestre, meio
formado por fluidos em vários graus de pureza, um tanto grosseiros se
comparados aos que compõem as regiões superiores, razão pela qual são estas, de
ordinário, inacessíveis aos espíritos atrasados, que nelas não podem viver, a
despeito de visitá-las como estrangeiros e, ainda assim, apenas entrevendo-as. Portanto, segundo suas elevações, os espíritos povoam não
apenas a superfície da Terra, entre os encarnados, de onde muitos não
conseguem se afastar, mas também o espaço que a circunda,
segundo o alvo do foco possível de suas percepções entre as várias camadas de
fluidos espirituais do planeta. Como as coisas se passam
nesses meios? Naqueles cujos fluidos são bem desmaterializados, sequer o
imaginamos. Nas ambiências, todavia, em que a constituição fluídica se
apresenta mais identificada à vida corporal, parece razoável admitir, seria
menos difícil supô-lo, ainda que, mesmo nessas regiões mais densas, as coisas
não possam transcorrer como se aqui se verificassem. Do contrário, afinal, não
haveria a menor necessidade do estado de encarnação que, nesse caso, mais
pareceria um acidente de percurso, à moda rustenista e, avanço em dizê-lo, era
mesmo até esse ponto de distorção conceitual que nos queriam conduzir as almas
jesuíticas da inglória causa federativa.
A doutrina espírita ensina que os
espíritos conservam as faculdades que tinham na Terra; que eles têm visão, audição,
sensação, percepção, mas diversamente de quando possuíam um corpo físico, ainda
que muitos deles, em erro, julguem que tais coisas se passem, por lá, da mesma
forma que no corpo; o modo pelo qual atuam, inclusive. O
pensamento dos espíritos atrasados não está esclarecido por vezes, e é então
que muitos até julgam viver ainda entre os homens e mulheres, partilhando de
suas aspirações, paixões e desejos. Nos meios compatíveis com essa sua
natureza, os fluidos chegam a ter, para eles, aspecto tão material
quanto, para nós, nossos objetos tangíveis; os combinam e elaboram, consciente
ou inconscientemente, para produzir certos efeitos, mas o fazem por outros
processos: pensamento e vontade. Podem formar, então, conjuntos com aparência,
forma e cor determinadas. Kardec inclui essas possibilidades dos fenômenos
peculiares ao mundo espiritual no que chamou laboratório do mundo invisível. Nem de longe lhe confere, todavia, o condão de produzir
obras arquitetônicas majestáticas, estruturas complexas ao extremo, sobretudo
quando voltadas para atender necessidades que não podem ser satisfeitas no
além, ou para um funcionamento quase burocrático de inchadas estruturas
organizacionais; ao menos não no mundo espírita kardeciano, mais fidedigno em
detalhes reais e, por isso, certamente mais sóbrio. Tedioso, claro, só para o
comum dos leitores de romances mediúnicos, estimulados por curiosidades tão
ociosas quanto propícias a espíritos menos sérios, que compensam com artifícios
ficcionais e vagas de raciocínio a falta de conteúdo realmente espiritual de
seus comunicados.
Verdade que o mestre publicou, nas
suas primeiras revistas espíritas, ditados contendo desenhos mediúnicos da
suposta casa de Mozart em Júpiter; todavia o fez a título de inventário aos
leitores, para que julgassem o caso como quisessem; além disso, o referido
espírito lá estaria em estado de encarnação, não no de erraticidade, o que
determina relevantes diferenças de consideração.
Espíritos errantes não necessitam de casa ou comida; não padecem doenças e não
têm sofrimentos senão de natureza moral; mais pungentes, aliás, que os físicos. Contudo, transitam numa locação que, às vezes, não é a
superfície do planeta, e sim o espaço mais ou menos imediatamente acima dela,
algumas camadas da atmosfera espiritual terrestre, de fluidos um tanto
grosseiros e cuja aparência, em função disso, pode lembrar o meio
terreno em básicas referências, mesmo que fugidias; superfície e firmamento,
por exemplo. Quem sabe, algo similar aos tais campos, espécies de
bivaques, de que Mozart falou a Kardec em primeira mão. [...] já vos dissemos que há mundos
particularmente destinados aos seres errantes, mundos que lhes podem servir de
habitação temporária, espécies de bivaques, de campos onde descansem de uma
demasiado longa erraticidade, estado este sempre um tanto penoso.
Independentemente da diversidade dos
mundos, essas palavras [‘há muitas moradas na casa do Pai’] podem também ser
interpretadas pelo estado feliz ou infeliz do espírito na erraticidade.
Conforme for ele mais ou menos puro e liberto das atrações materiais, o meio em
que estiver, o aspecto das coisas, as sensações que experimentar, as percepções
que possuir, tudo isso varia ao infinito.
Poder-se-ia perguntar como é que os
espíritos se podem evitar no mundo espiritual, uma vez que aí não existem
obstáculos materiais nem refúgios impenetráveis à vista. Tudo é, porém,
relativo nesse mundo e conforme a natureza fluídica dos seres que o habitam. Só
os espíritos superiores têm percepções indefinidas, que nos inferiores são limitadas.
Para estes, os obstáculos fluídicos equivalem a obstáculos materiais. Os
espíritos furtam-se às vistas dos semelhantes por efeito [da vontade], que atua
sobre o envoltório perispiritual e fluidos ambientes.
Existem alguns cujo envoltório
fluídico, mesmo sendo etéreo e imponderável em relação à matéria tangível,
ainda é muito pesado, se assim podemos dizer, em relação ao mundo espiritual,
para permitir que eles saiam do meio onde se encontram. É preciso incluir nessa
categoria aqueles cujo perispírito é bastante grosseiro para que o confundam
com o corpo carnal, razão pela qual continuam achando que estão vivos. Esses
espíritos, cujo número é grande, permanecem na superfície da Terra, como os
encarnados, julgando-se sempre entregues às suas ocupações; outros, um pouco
mais desmaterializados, ainda não o são o suficiente para se elevarem acima das
regiões terrestres [...] A
camada de fluidos espirituais que cerca a Terra se pode comparar às camadas
inferiores da atmosfera, mais pesadas, mais compactas, menos puras, do que as
camadas superiores.
[...] a constituição íntima do perispírito não é idêntica em todos os espíritos
encarnados ou desencarnados que povoam a Terra ou o espaço que a circunda.
Resta saber se neste espaço que
circunda a Terra, isto é, se nas camadas de fluidos espirituais do seu entorno,
seria impossível que, por uma razão ou por outra, houvesse meios cujas
composições fluídicas assumissem só um certo aspecto das ambiências
terrenas, já que podem, afinal, variar ao infinito, como vimos Kardec dizê-lo.
Os espíritos Bizet e Mesmer prestaram, respectivamente, curiosas informações ao
mestre: [...] tive sob os olhos o atroz
espetáculo da fome entre os espíritos. Encontrei lá em cima muitos desses
infelizes, mortos nas torturas da fome, ainda procurando em vão satisfazer a
uma necessidade imaginária, lutando uns contra os outros para arrancar um
pedaço de comida que se escondia em suas mãos, dilacerando-se mutuamente e, se
posso dizer, se entredevorando; [...] enquanto na Terra se pensa que aqueles
que partiram ao menos estão livres da tortura cruel que sofriam, percebe-se do
outro lado que não é nada disso, e que o quadro não é menos sombrio, embora os
autores tenham mudado de aparência.
O mundo dos invisíveis é como o
vosso. Em vez de ser material e grosseiro, é fluídico, etéreo, da natureza
do perispírito, que é o verdadeiro corpo do espírito, haurido nesses
meios moleculares, como o vosso se forma de coisas mais
palpáveis, tangíveis, materiais. O mundo dos espíritos não é o
reflexo do vosso; o vosso é que é uma imagem grosseira e muito imperfeita
do reino de além-túmulo.
Pode haver até alguma dúvida sobre a
locação da cena descrita por Bizet: trata-se da superfície da Terra,
entre os encarnados, ou do espaço que a circunda, com seus vários meios
fluídicos? Todavia, Bizet informa que tudo aconteceria, sim, do outro lado,
mas lá em cima. Em que pese aos espíritos conservarem a capacidade de
perceber o que na Terra se passa conosco e entre nós,
as percepções dos envolvidos na cena vista por Bizet não estão voltadas em
nenhuma medida para o que se verifica na vida física; talvez exatamente porque
não estariam nas regiões terrestres de fato, entre os vivos. De qualquer forma,
veem-se num drama cujo cenário é construído por seu desequilíbrio, com direito
a criação fluídica até de um pedaço de comida, tão objetiva no além, que é
identificada por um terceiro; este goza, contudo, de melhores condições morais
e, a despeito de avistar esse tétrico conjunto de aparência, forma e cor
determinadas, logo julga vã a motivação que o gera:
satisfazer necessidade que, afinal, ali, não poderá ser atendida, por não haver
função do perispírito que a demande. A cena transcorre pungente e horrenda. E
Kardec não lhe faz reparo algum. Esmera-se até em defender a idoneidade do
espírito comunicante e a precisão de seus informes, classificando a situação de
modo quase inédito em seus escritos: prolongação mista da vida terrena, vida
intermediária que, se bem não seja física nem propriamente espiritual, é
inerente ao estado de inferioridade de certos espíritos e necessária ao
seu adiantamento. Claro está, porém, que quase tudo não passa da criação de
ilusões desses espíritos a si mesmos, ainda que se objetivem, até certo ponto,
nalguns conjuntos fluídicos postos em ação pelo seu pensamento. Colônias? Onde?
O Livro dos Espíritos havia lecionado ser o nosso mundo reflexo
obscuro desse outro; e Kardec, ser a vida humana decalque dessa
outra; entretanto, nesses casos, nada quanto ao aspecto propriamente do meio
espiritual, e sim à sua organização societária e respectiva meritocracia. Já a fala de Mesmer bem distingue: 1) mundo espírita; 2)
perispírito de seus habitantes. Afiança que o mundo dos invisíveis seria como o
nosso, na medida em que o nosso constituiria uma imagem grosseira e muito
imperfeita do reino de além-túmulo. Grosseira e imperfeita no que
remete, por certo, a nossa forma mortal: comemos, bebemos, nos reproduzimos,
para manutenção da vida que, aqui, extingue-se; assim mesmo, porém, nosso mundo
não passaria de uma imagem, algo que, em aparência, aspecto,
similar se apresentaria, portanto, a certas regiões etéreas, à exceção de
fruições corporais, inviáveis nesses ambientes, em nada ecológicos, por não
haver mais a morte ali; talvez holográficos, por assim dizer. Insisto: Quem
sabe, algo como os tais campos, espécies de bivaques, que
originalmente Mozart revelou a Kardec.
Para espaços infinitos que são
povoados ao infinito seria tão inviável esse aspecto, só o aspecto um tanto
terreno de certas regiões fluídicas mais densas? Quer-se evitar o fomento da
imaginação criativa de muitos, que os coloca nos domínios da pseudo-revelação
luizina e suas desastrosas congêneres. Fato. Entretanto, abandonada a
compreensão que, desse assunto, só Kardec pode proporcionar em mais diligentes
medidas, é que se lançam os menos avisados exatamente ao fluxo do que lhes
parecerá mais detalhado: os romances mediúnicos; em geral, um cortejo absurdo
de subversões aos princípios do Espiritismo: espíritos a comer, a beber, a
casar, a morar; e, hoje, mesmo a copular, a se reproduzir, com fecundação,
gestação, nascimento dos “bebês” e, pasmem, até a morrer, sobrevindo o
sepultamento dos perispíritos em cemitérios d’além-túmulo...
Já diz muito o fato de que os
espíritos inferiores podem, sim, e com frequência, consciente ou
inconscientemente, criar ilusões a si mesmos e, em certos limites, até
objetivá-las nos fluidos. Nada comparável, no entanto,
aos evidentes abusos da subliteratura mediúnica e suas fantasias coloniais.
Avanço mais uma vez em dizê-lo: era mesmo até esse ponto nefasto de distorção
conceitual que nos queriam conduzir as almas jesuíticas da inglória causa
federativa. Ante uma vida espiritual que, na prática, só replica a fruição da
vida física, esvazia-se de sentido o princípio espírita da absoluta necessidade
da encarnação, abrindo caminho para a ideia de que seria mera exceção punitiva
aos que sofrem a queda. Portanto, rustenismo sutil do além, mediante agora a
subliteratura de ficção, bem ao gosto popular, em quase tudo ingênuo e, de
ordinário, desavisado. Kardec seria bem melhor, mas para este, nada.
[...] o espanto cessa quando se sabe
que esses mesmos espíritos são seres como nós; que têm um corpo, fluídico é
verdade, mas que não deixa de ser matéria; que, deixando seu invólucro carnal, certos
espíritos continuam a vida terrestre com as mesmas vicissitudes, durante um
tempo mais ou menos longo. Isto parece singular, mas é, e a observação nos
ensina que tal é a situação dos espíritos que viveram mais a vida material do
que a vida espiritual, situação por vezes terrível, porque a ilusão
das necessidades da carne se faz sentir, e se tem todas as angústias de uma
necessidade impossível de satisfazer. O suplício mitológico de Tântalo,
nos Antigos, acusa um conhecimento mais exato do que se supõe, do estado do
mundo de além-túmulo, sobretudo mais exato que entre os modernos. [...] O
quadro que apresenta o cura Bizet nada tem, pois, de estranho; vem, ao
contrário, confirmar, por mais um grande exemplo, o que já se sabia; e, o que
afasta toda ideia de reflexão de pensamentos, é que o fez espontaneamente, sem
que ninguém pensasse em chamar sua atenção sobre aquele ponto. Por que, então,
teria vindo dizer, sem que se lhe perguntasse, se aquilo era assim ou não? Sem
dúvida a isto foi levado para a nossa instrução. Aliás, toda a comunicação traz
um cunho de gravidade, de sinceridade e de modéstia, que é bem o seu caráter e
que não é próprio dos espíritos mistificadores.
Afora o que destaquei de Mozart,
Kardec, Bizet e Mesmer, entendo que também São Luís, Erasto e Santo Agostinho
rasgaram esse véu, ao se referirem a: 1) mundos intermediários
como viveiros da vida eterna, onde os espíritos se agrupam conforme seus graus
de adiantamento; 2) regiões similares à Terra,
das quais espíritos muito aprisionados à matéria não se podem afastar, bem como
não o podem das próprias regiões terrenas; 3) mundos
inferiores em que os encarnados, mesmo durante o sono, buscam antigas
afeições que os chamam, prazeres mais baixos do que têm aqui, doutrinas mais
vis, mais ignóbeis, mais nocivas do que as que professam no corpo, em vigília. Seriam todas essas, no entanto, simples menções a outros
planetas, e não a meios etéreos do nosso próprio orbe? Em caso afirmativo:
1) Urgiria supor que São Luís se
refere ao conceito inicial de mundos transitórios e, com efeito, que busca em
meios interplanetários os espíritos afins que, na Terra encarnados, explicam a
identidade de caráter tantas vezes observada entre pais e filhos. Não os
existiriam por aqui mesmo? 2) Seria preciso crer possível, no pensamento de Erasto,
que espíritos materialistas, antes na Terra encarnados e, por cegueira moral,
aprisionados violentamente aos laços da matéria depois de mortos, deslocam-se,
por vezes, para outros planetas, similares ao nosso, não permanecendo,
assim, de preferência, na superfície da Terra, ou no espaço que a circunda. 3)
Ter-se-ia que admitir Santo Agostinho a revelar, de espíritos inferiores,
verdadeiras viagens interplanetárias durante os períodos de sono e, portanto,
em estado de encarnação, o que não é exatamente um facilitador; anote-se que é
referida a busca de prazeres ainda mais baixos do que eles têm durante a
vigília; em espírito, ainda que presos a um corpo, não podem supor que
satisfazem tais paixões senão alucinando, criando ilusões a si mesmos, entre pares
igualmente inconsequentes. Tratar-se-ia, pois, de semelhantes interplanetários,
localizados em mundos transitórios? Em todos os casos, restaria exorbitado o
princípio de economicidade tão caro à razão. Por que imaginarmos alhures os
seres que mais provavelmente estão vinculados ao nosso próprio planeta? Por que
não estariam nos seus meios correspondentes aos estados sutis da matéria,
integrantes da atmosfera espiritual terrestre?
Antes de selar como mistério
indevassável toda a vida espiritual, melhor admitir-lhe, ainda que fugidias,
algo das referências terrenas, sempre tendo em vista, claro, para a análise das
comunicações em que apareçam, as vigilantes restrições dos princípios
kardecianos: 1) eventuais ilusões que os espíritos podem criar a si mesmos,
ainda que objetivadas nos fluidos; 2) aparências que podem criar visando um fim
qualquer, a encarnados ou desencarnados; 3) meras ficções
psicográfico-obsessivas, cujo fim é a distorção dos ensinos do Espiritismo, sua
substituição por outra matriz doutrinária.
Fato é que esse prolongamento misto
da vida terrena é situação por vezes terrível, sim; isto significa,
contudo, que, doutras, nem tanto; fica a depender dos espíritos. Sobretudo na
superfície do planeta, mas também no espaço que a circunda, está a massa da
população ambiente do mundo invisível. Ela é composta, segundo Kardec: 1)
pelos que, não mais podendo satisfazer suas paixões, se agradam da companhia
dos encarnados que a estas se entregam, incitando nestes o cultivo daquelas; 2)
pelos que se julgam ainda vivos; 3) pelos que, menos atrasados um pouco, embora
não menos vulgares, já buscam algum aperfeiçoamento e instrução vendo e
observando nossos costumes, mas impacientando-se por faltar-lhes a realidade
dos nossos prazeres. Se distanciados, porém, da
superfície da Terra e, assim, no espaço que a circunda, só quanto ao aspecto
das coisas é possível aos espíritos menos depurados se moverem entre
holográficas referências terrenais, próprias ainda dessas regiões etéreas mais
densas.
Como quer que seja, em nenhuma
hipótese atende-se a necessidades que, do outro lado, não é
possível satisfazer; não há, lá em cima, como fruir gozos carnais, por
falta do instrumento dos mesmos: o corpo físico. Por isso Kardec recorre ao
suplício mitológico de Tântalo como oportuna ilustração; a metáfora de tudo que
está tão perto e, ao mesmo tempo, é inalcançável. Havia entre os antigos um
conhecimento mais exato do estado do mundo espiritual do que entre os modernos,
segundo Kardec; pela razão de que estes materializavam os gozos de além-túmulo,
bem como suas penas. O Espiritismo discorda terminantemente disso, seja no
cristianismo, seja mesmo no islamismo. Diz Kardec sobre
certa nuança da vida depois da morte no Alcorão, Surata XXXVII, v. 39 a 47:
Sem dúvida se notará que os rios, as
fontes, os frutos abundantes e as sombras aí representam grande papel, por
faltarem sobretudo aos habitantes do deserto. Os leitos macios e as roupas de
seda, para gente habituada a dormir no chão e vestida com grosseiras peles de
camelo, também deviam ter grande atrativo. Por mais ridículo que tudo
isto nos pareça, pensemos no meio em que vivia Maomé e não o censuremos muito,
pois, com o auxílio deste atrativo, ele soube tirar um povo da barbárie e dele
fazer uma grande nação.
Que diria Kardec então sobre a
literatura de Chico Xavier e cia.? Que diria da comida, da bebida, das
moradias, dos perispíritos com “calor orgânico” e “pulsação regular” de André
Luiz? RIDÍCULO! Alguns querem situá-la numa transição
do Catolicismo para o Espiritismo. Mas não vejo que a maioria evolua de
Chico Xavier a Kardec; o contrário é que é considerado evolução, sem que
praticamente ninguém se dê conta de um tão colossal anacronismo. Ora! Da
refinada e cuidadosa concepção do mundo espírita, sem mescla em Kardec, até as
bizarras grosserias da literatura de Chico Xavier e quejandos não há senão uma
involução lamentável e grotesca.
De fato, o conceito de mundos
transitórios é coisa crua, até insólita inicialmente. Espíritos a viver em meio
ao caos dos elementos, até que a vida surja e se organize em planetas
temporariamente inférteis, soa um tanto estranho sem o adendo que Kardec adiciona
posteriormente: atmosfera espiritual, não mais a simples ação dos
pensamentos nos fluidos ambientes, mas regiões etéreas, meios de maior ou menor
pureza, que lhes servem de habitat post-mortem. As circunstâncias
em que a ideia de mundos transitórios ou intermediários é transmitida ao mestre
são, no mínimo, curiosas.
Ele desconfia de uma informação de
Chopin e lhe diz não compreender ser possível a espíritos errantes a execução
de peças musicais no além-túmulo. Mozart, instado por Kardec a dar explicações
sobre esse suposto fato, assegura compreender a hesitação do mestre; todavia
confirma o dito de Chopin e o justifica com a existência, para os seres
errantes, dessas espécies de bivaques, de campos onde descansem de
uma demasiado longa erraticidade, embora, com isso, em absoluto, não
responda ao que Kardec lhe pergunta. O mestre submete a questão a outro centro
espírita, no qual Santo Agostinho junta a essas as informações que definem como
mundos transitórios os planetas de superfície temporariamente
estéril, mas habitados por espíritos errantes; avança e diz que, em nosso
sistema, nenhum orbe existe nessa condição e que, só a Terra, durante sua
formação, foi um deles, também conhecidos àquela altura por mundos
intermediários.
Esta sinonímia permanece na Revista
e não passa explicitamente ao Livro dos Espíritos, no qual Kardec, na
verdade, promove uma espécie de harmonização dos ensinos de Mozart sobre campos
de descanso e os de Santo Agostinho a respeito de mundos transitórios. Isto se verifica sob o império da matemática, da física,
da química, da biologia e, neste caso, sobretudo, da astronomia. O contexto
cultural positivista é determinante para o julgamento de Kardec. Ante o
paralelismo vocabular entre Espiritismo e astronomia, ele assimila os campos de
descanso de Mozart aos mundos transitórios de Santo Agostinho, em cujo
ínterim, mais tarde, instala-se a temeridade das colônias espirituais. Não há
demérito de Kardec. Houve uma fatalidade. Essas ciências são matrizes
metafóricas fortíssimas; a tal ponto que o próprio Espiritismo teria abortado
se surgisse antes delas. Nenhuma surpresa, portanto.
As coisas findam por se definir
melhor no capítulo décimo quarto de A Gênese, no qual Kardec traça um
recorte epistêmico brilhante, em que deixa os espaços físicos, materiais,
ponderáveis, às ciências, e reivindica os domínios fluídicos, imponderáveis,
espirituais, para o Espiritismo. Com isso, os espíritos são postos, enfim, em
suas mais precisas fronteiras universais, que se estendem das superfícies
planetárias até as inumeráveis camadas fluídicas que as circundam. Tanto os
mundos transitórios de Santo Agostinho, quanto os campos de descanso de Mozart,
permanecem viabilizados, desde que não padeçam o embaraço reducionista
inicialmente provocado pelo paralelismo vocabular entre Espiritismo e
astronomia. Diz-se, aliás, que os espíritos estão no mundo espírita,
todavia, a ninguém acode o pensamento de que estejam propriamente noutro planeta,
ao menos não na superfície de algum deles. Assim, depois de erraticidades algo
penosas, tantas vezes acontecidas nas superfícies planetárias, ou nas regiões
fluídicas próprias de seus entornos mais imediatos, pode-se admitir sejam os
espíritos encaminhados a esses mundos, isto é, na verdade, a essas espécies
de bivaques, de campos de repouso também localizados na atmosfera
espiritual dos orbes, donde seguem, após períodos mais ou menos longos, em
geral, para a reencarnação. Nada, porém, que autorize o mundo espírita a
replicar a vida física em peripécias coloniais.
O Espiritismo espraia a vida
espiritual pelos “espaços infinitos povoados ao infinito”; o espaço que se
supõe vazio está cheio de uma matéria em estados que, de ordinário, escapam aos
nossos sentidos e instrumentos: esse é o mundo dos espíritos propriamente dito,
que interpenetra o universo físico e em tudo o transcende. Estima-se, aliás,
que a matéria conhecida represente apenas quatro por cento do universo, cabendo
vinte e seis por cento à matéria escura e, assustadores setenta por cento, à
energia escura. Pouquíssimo se compreende a respeito do que efetivamente
seriam.
Para além das nossas conjecturas, no
entanto, é bom que se saiba haver estas certezas inflexíveis, o grande legado
espírita a nossa modernidade atormentada pela doença de uma suspeita
sistemática ao extremo: 1) a alma do justo é recebida como um irmão bem-amado e
longamente esperado; a do mau, como um ser que se despreza; 2) segundo a
afeição que tenhamos mantido, quase sempre aqueles que conhecemos na Terra vêm
receber-nos, ajudar-nos em nossa libertação das faixas da matéria, depois do
que reencontraremos a muitos que havíamos perdido de vista, assim como veremos
outros espíritos que ali estarão, e os que se encontrarão ainda encarnados, que
poderemos, sim, visitar; 3) raro será que haja solidão, porque viveremos em
grupos, em famílias, unidos na similitude de tendências e propósitos, segundo
nossa elevação; 4) conforme nossas disposições evolucionais e até que não nos
haja mais proveito nisto, voltaremos a viver aqui, ou noutros mundos, rumo à
vida exclusivamente espiritual.
Referências Bibliográficas
Revista Espírita.
Mai/1859. “Música de Além-Túmulo” e “Mundos Intermediários ou Transitórios”, n.
3. O Livro dos Espíritos, 234 a 236.
O Livro dos Espíritos, comentário ao n. 317. Revista Espírita.
Maio/1859. Cenas da Vida Privada Espírita, ns. 20 a 22.
Fonte: http://ensaiosdahoraextrema.blogspot.com.br/2013/05/o-espaco-e-os-mundos-nao-colonias.html
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