A religião assume uma face moderna e cresce entre os jovens de classe média. Maior país espírita do mundo, o Brasil já exporta a Doutrina para os Estados Unidos Martha Mendonça | |||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
Raica, Raul e Divaldo são, segundo uma reportagem publicada recentemente no jornal americano The New York Times, as faces visíveis de um novo fenômeno: a abertura de centros espíritas nos Estados Unidos dirigidos por brasileiros, frequentados pela comunidade latina e também por americanos. O Brasil não é apenas o maior país católico do mundo. É também a nação com maior número de espíritas, cerca de 20 milhões de pessoas, segundo os números oficiais. E, agora, tornou-se também o principal pólo difusor da religião fundada e sistematizada pelo frncês Allan Kardec.
Esse "novo espiritismo" preserva os pilares básicos da religião: a imortalidade do espírito, sua reencarnação e evolução, além da possibilidade de comunicação entre vivos e mortos. mas se baseia muito mais em leituras e na introspecção que em rituais ou sessões que invocam supostas forças do além. São incentivadas também as duas práticas mais fortes da doutrina: a caridade e a tolerância religiosa. O espiritismo vem crescendo no Brasil, principalmente entre jovens de classe média. No site de relacionamentos Orkut, já existem 366 comunidades sobre "espiritismo" e outras 808 quando se busca a palavra-chave "espírita".
Além de Raica de Oliveira, outras celebridades vêm aderindo ao espiritismo, embora poucas alardeiem professar a crença. Boa parte prefere tratar o assunto como algo privado. É o caso da atriz Cleo Pires, que herdou a fé do seu pai, o cantor Fábio Júnior, e dos avós maternos. O tenista Gustavo Kuerten recentemente se submeteu a um tratamento espírita, levado por seu fisioterapeuta, Nilton Petrone - o mesmo de Xuxa e Romário.
O novo espiritismo que atrai gente como Raika ou Guga engendrou algo que se pode chamar de "Cultura Espírita". É natural, numa religião em que a leitura prevalece cada vez mais sobre o virtual, que a faceta mais visível dessa cultura sejam os livros. Vários deles atingiram a lista dos best-sellers. Sozinho, o mineiro Chico Xavier, morto em julho de 2002 e considerado o maior dos médiuns pelos adeptos da religião, vendeu (e ainda vende) 25 milhões de exemplares de seus mais de 400 livros, todos supostamente psicografados. Zibia Gasparetto, de 78 anos, já vendeu 5 milhões de exemplares de obras que afirma ter psicografado. Há dez anosnão sai da lista dos dez bet-sellers nacionais. Outro sucesso nas livrarias foi a coletânea de entrevistas Encontro com Médiuns Notáveis, escrita pelo músico e pesquisador Waldemar Falcão. O jornalista Marcel Souto Maior chegou à casa dos 300 mil exemplares nos últimos dez anos, desde que lançou a biografia As Vidas de Chico Xavier. O livro vai servir de base para um filme, com direção de Daniel Filho e lançamento previsto para o ano que vem. A principal característica da cultura espírita é que ela ultrapassa os adeptos da doutrina e até aqueles que têm o espiritismo como segunda religião. Para além dos livros que fazem sucesso com os leitores de todas as crenças, os programas de televisão que tratam do assunto sempre conseguem uma larga audiência. Trasnmitida até o início deste ano, a novela Alma Gêmea, da TV Globo, teve o melhor Ibope do horário das 6 na última década, impulsionada por uma história de reencarnação. Quando o folhetim foi ao ar, a Globo fez uma pesquisa qualitativa para saber a aceitação do tema entre os espectadores. Mesmo os que não eram espíritas aprovaram enfaticamente a trama e os personagens. Quando terminar sinhá moça, que está no ar com resultados inferiores aos de Alma Gêmea, entrará no ar O Profeta. Nova versão da novela de Ivani Ribeiro dos anos 70, na Tupi. a trama gira em torno de espiritismo e mediunidade. Na nova versão de O Profeta, o protagonista será interpretado pelo ator Thiago Fragoso. "O telespectador gosta de assuntos que o levem a pensar sobre o que somos, para onde iremos", diz Walcyr Carrasco, autor de Alma Gêmea e supervisor da adaptação de O Profeta.
Sem falar que podemos levar créditos ou débitos para outras vidas". Piericci considera que há três razões pelas quais "o novo espiritismo" atrai tantos adeptos entre a classe média:
Para entender cada um desses motivos, é preciso fazer um breve histórico da religião espírita. As idéias que alicerçam o espiritismo foram sistematizadas pelo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, nascido em Lyon em 1804. Ele passaria para a história sob o pseudônimo de Allan Kardec - que seria o nome de um druida, supostamente sua encarnação anterior. Nascido em uma família de magistrados católicos, ele decidiu seguir também o caminho da educação e sempre lutou pela democratização do ensino público na França. Em 1854, kardec se interessou pelo fenômeno então conhecido como "mesa giratória". Nos salões elegantes, após os saraus, gente da alta sociedade costumava se sentar em torno dessas mesas para, segundo acreditavam, dialogar com os espíritos. Utilizando recursos supostamente mediúnicos dos presentes, as entidades desencarnadas se manifestariam. Segundo os historiadores, o fenômeno foi a coqueluche da sociedade francesa de 1853 a 1855. Os eventos das mesas giratórias ganharam dezenas de reportagens dos jornais europeus. Kardec mergulhou nesse universo por três anos, até estruturar uma doutrina que, segundo ele, unia os conhecimentos científico, filosófico e religioso. Ele escreveu sua obra básica, O Livro dos Espíritos, em 1857. O livro é resultado dos diálogos que Kardec afirma ter estabelecido com os espíritos desencarnados nas diversas reuniões mediúnicas de que participou. Kardec não dizia ser médium. Afirmava valer-se de um método científico para conferir a veracidade dos diálogos. Dizia ouvir a voz de diferentes espíritos por meio de diferentes médiuns para cotejar as versões. A obra se estutura em 1.019 tópicos, no estilo pergunta e resposta. O Livro dos Espíritos serviu de base para mais quatro obras de Kardec: O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno e A Gênese. Como há outras religiões espiritualistas - que creêm na vida além da matéria -, criou-se a expressão "Kardecismo" para diferenciar a doutrina de Kardec das outras. O termo, porém, é considerado errôneo pela Federação Espírita Brasileira (FEB). Chamar o espiritismo de kardecismo é considerado uma redundância. Kardec morreu em 1869, aos 64 anos, e seus livros estão para o espiritismo como o Novo Testamento para os cristãos, a Torá para os judeus e o Alcorão para os mulçumanos. Quando Kardec codificou sua doutrina, deu-lhe um revestimento científico. É essa roupagem racional o primeiro motivo para o sucesso do espiritismo no mundo moderno. "Razão a fé não estão em polos opostos. Cremos em algo lógico, não místico", diz o presidente da Federação Espírita Brasileira, Nelson Masotti. "Seria difícil seguir uma religião que não estimula a discussão e o conhecimento", diz o engenheiro carioca Ricardo Danziger, de 47 anos, filho de mãe católica, e pai judeu. Toda a sua família - a mulher, Ana Cristina, e os filhos adolescentes, Ricardo e Júlia - professa a religião espírita e frequentam o mesmo centro, o Lar Teresa, no bairro carioca de Copacabana. Ao contrário do que se possa imaginar, quem entra num centro espírita não vai encontrar médiuns se contorcendo ou sessões de exorcismo coletivo. Centros espíritas são, mais que tudo, espaços de leitura, discussão e prece. Nas reuniões dos espíritas, normalmente há primeiro uma leitura de um dos livros de Kardec. Depois uma palestra em que o participante do centro apresenta suas interpretações sobre algum ponto da doutrina. Por fim, há o passe, momento em que o médium (não necessariamente incorporado) diz trocar energia com os presentes. Ao fundo, oração coletiva e, em muitos casos, luz mais fraca.
A segunda razão para o crescimento do espiritismo é a flexibilidade da doutrina. Avessos a fundamentalismos, hierarquias, sacerdotes, altares e ídolos, os espíritas acolhem pessoas de todas as religiões. Não há exigências na atitude, no vestuário ou cobrança financeira. Adeptos de outras religiões costumam se envolver com o espiritismo sem necessariamente abandonar as crenças originais. "Somos avessos ao fundamentalismo. Dai ser tão importante o estudo e a leitura", afirma o carioca Raul Teixeira, considerado pela Federação Espírita Brasileira um dos maiores médiuns do país. "Quem se degaldia com outras religiões mostra falta de maturidade na fé. Quem não crê o suficiente tenta convencer os outros para convercer a si mesmo." Uma pesquisa realizada pela Federação Espírita Brasileira em São Paulo e no Rio Grande do Sul mostra que apenas um em cada quatro frequentadores de centros se considera oficialmente espírita. "Não temos dogmas, santos, hierarquia. Há respeito por todas as crenças", diz o economista carioca André Menezes Cortes, de 36 anos. nascido em uma família católica, hoje ele é adepto da doutrina de Kardec. A terceira e principal razão para que o espiritismo tenha tantos adeptos é a maneira como a religião fundada por Kardec lida com a questão da morte. para os espíritas, ela não é o fim de tudo. É possivel ter outras vidas e nelas resolver assuntos pendentes de encarnações passadas. É algo semelhante ao que os budistas costumam chamar de carma, uma espécie de "preço" para nas diversas vidas rumo à evolução espiritual. Para os cristãos, a vida é uma chance única: resolva tudo agora e salvará sua alma - ou arderá no inferno. O Budismo e o induismo admitem a reencarnação. Só o espiritismo, no entanto, diz possibilitar a comunicação entre "encarnados" e "desencarnados". Segundo os espíritas, é possível trocar mensagens orais ou escritas por meio dos médiuns - pessoas que funcionam como antenas entre os dois mundos.
Chico Xavier foi o maior deles. Escreveu mais d 400 livros. Mulato pobre, nascido em Pedro Leopoldo, no interior de Minas Gerais, Chico foi perseguido e investigado desde os anos 30, quando sua fama se alastrou pelo país> Nessa época, ele dizia psicografar textos de escritores e poetas mortos, que guardavam, para espanto geral, incrível semelhança com o estilo original. nas décadas que se seguiram, Chico se tornou referência no mundo do espiritismo. Isso resultou em verdadeiras romarias a sua casa, em Uberaba, em Minas, para onde se mudou em 1959 e onde morou até morrer, aos 92 anos, em 2002. As obras de Chico Xavier trouxeram imenso consolo ao taxista carioca Gilberto da Silva Netto, de 65 anos. Há algumas semanas, as noites de Gilberto tem sido dedicadas à leitura de Jovens no Além, escrito por Chico Xavier em 1975. O livro tras mensagens supostamente psicografadas por pessoas que perderam a vida cedo, em circunstâncias trágicas. Gilberto é pai de Rodrigo, o Nettinho, guitarrista da banda Detonautas, assassinado num assalto no início de junho no Rio. Católico de formação. Gilberto se define como cético sobre qualquer religião. Mas diz ter se aproximado do espiritismo em busca de respostas.
A doutrina de Kardec chegou ao Brasil logo depois de ter sido divulgada no Livro dos Espíritos, por meio de um grupo de franceses que moravam no Rio, então capital do Império. Foi rapidamente absorvida por uma elite. Com o tempo, começaram as primeiras repercussões de supostos eventos mediúnicos e tratamentos espirituais. A partir de 1890, um movimento liderado por médicos, apoiados por juristas, resultou em perseguição ao espiritismo. "De certa forma, naquele momento a doutrina concorria com a medicina", diz a antropóloga Sandra Stohl, autora do livro Espiritismo à Brasileira, baseado em sua tese na Universidade de São Paulo. Foi o médico Adolfo Bezerra de Menezes, na primeira metade do século XX, quem deslocou o foco da doutrina da ciência para a caridade. Essa ênfase se tornou uma característica marcante do espiritismo brasileiro. Estima-se que meio milhão de pessoas no país recebam ajuda de alguma entidade espírita. A própria Federação Espírita Brasileira iniciou um trabalho social em 1884, ano de sua fundação. Heje ela dá assistência a aproximadamente mil famílias, além de manter uma creche para 800 crianças na cidade de Santo Antônio do Descoberto, em Goiás. As Casas André Luiz, de São Paulo, atendem pacientes pacientes com problemas de saúde mental - 630 em regime de alojamento e 800 em regime ambulatorial. A assitência se estende à familia do doente, já que quase todos os pacientes são muito pobres. Divaldo Pereira Franco, aquele que também atua nos Estados Unidos, mantém em Salvador a Mansão do Caminho. Desde 1947, a entidade já prestou atendimento médico e odontológico a mais de 30 mil pessoas. vivemos num mundo cada vez mais competitivo, em que muitas vezes a caridade é deixada em segundo plano. A época atual é também de recrudescimento de fundamentalismos que sufocam a liberdade religiosa. Num tempo assim, a acolhida cada vez maior da mensagem espírita, fundamentada na tolerância e solidariedade, é um fato a comemorar.
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dos tesouros imperecíveis da alma.
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